terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Conto do que vi.

É o que normalmente acontece quando você está com pressa. A velinha com sua acompanhante ocupando todo o espaço da já estreita passagem no meio da multidão que às vezes lhe arrasta e às vezes lhe impede de prosseguir em razão dos inúmeros camelôs, barraquinhas, gente pedindo dinheiro ou oferecendo pequenos papéis onde se lê “dinheiro já!”.

Das pessoas que andam na sua direção, temos aquelas que simplesmente parecem se deslocar num curioso ziguezaguear, estranhamente sincronizado contigo. Ela escolhe sempre o lado que você decide ultrapassar. Como que antevendo seus movimentos e os frustrando em milésimos de segundos antes que você consiga executar a libertadora manobra.

Tem também aquelas pessoas que andam no sentido contrário à sua direção para quem você é um obstáculo tão intransponível quanto ele é para você, sem que ninguém tenha nenhuma responsabilidade pelos inúmeros esbarrões e encontrões, exceto pelo fato de cada um ter resolvido morar ou nunca se mudar de uma cidade que já tenha gente demais.

O ritmo é sempre frenético! Você anda pensando somente em conseguir se locomover e se livrar dessa dança urbana que é andar na multidão. Foi exatamente assim que com 10 minutos de atraso eu consegui embarcar no metrô, na Praça Seans Peña, na Tijuca para uma reunião no Centro da Cidade.

Ao entrar no trem procurei ficar no lado em que eu iria saltar com a preocupação de ficar perto da porta de saída, uma espécie de seguro contra uma lotação excessiva que me obrigasse a descer uma ou duas estações depois da minha.

Percebi que na minha frente parou uma moça jovem, sem muita beleza, com um aspecto um pouco desleixado, que se segurava na barra de apoio como se estivesse gratamente abraçando seu treinador após uma longa maratona. Ela encostava ali o seu rosto, a ponto de fazer dobrinhas na bochecha enquanto eu me perguntava intimamente, com as duas mãos no bolso, se ela de fato teria noção de quantas pessoas teriam deixado ali seus germes e bactérias antes dela.

Ela tirou da bolsa um saquinho de biscoitos salgadinhos, bem gordurosos, abriu e colocou no colo do menino sentado na sua frente, a quem só conseguia ver de cima aquela cabeça com cabelo lisinho cortado em cuia, já que eu estava em pé ao lado dele.

Uma falta de respeito, pensei. Na Tijuca, tão pouco naquele vagão não faltavam velhinhos (aqueles que dificultam o trânsito da multidão). Havia, também, um rapaz mais jovem que se equilibrava numa muleta que certamente precisaria descansar o braço. Pensei em falar com mãe que ainda namorava a barra de apoio, mas, imaginei que seria em vão.

O meu conflito interno só desapareceu quando percebi a completa inabilidade do pequeno em manter os biscoitinhos a salvo no trajeto saquinho-boca. Em sua volta havia mais biscoitos do que dentro da embalagem. Aliás, fazendo algumas contas por alto concluí que somando os que ainda estavam lá e os que estavam no chão a brincadeira era atirar biscoitinhos e não come-los.

A indiferença àquela bagunça por parte da sua mãe era surpreendentemente comovente. Além de não reprimir o filho ela não catava os biscoitos e ainda cantava algo incompreensível para o menino.

Tentei me desligar mais uma vez da cena e me concentrar na iminente reunião. Números, dados, argumentos, pessoas, dinheiro e aquelas coisas realmente importantes. Então, comecei a sentir uma delicada mãozinha esbarrar na minha calça.

Evidentemente, vinha do pequeno lançador de biscoitinhos. Imediatamente conclui que ele não deve ter tido o cuidado de sacar um guardanapo para limpar os seus dedinhos antes de encostar na minha calça o que me deixaria engorduradamente marcado para a reunião dali a poucos minutos.

Pensei em me afastar discretamente, o que era fisicamente impossível naquele vagão. Mais uma vez ele encostou em mim. Pensei num antipático olhar para o menino para que ou ele ou a mãe se tocassem. Mais uma vez ele encostou em mim. Ensaiei mentalmente um discurso sobre boas maneiras em público. Mais uma vez ele encostou em mim. Dessa vez a sua mão subiu pela lateral da minha calça até encontrar minha mão que já havia sacado do bolso, pensando numa eventual defesa contra os dedinhos engordurados.

Sua mãozinha não estava suja como eu imaginava, o que pelo menos me tranquilizou quanto à integridade da minha calça. Percorreu minha mão com um leve toque e depois a segurou como que a abraçando com as próprias mãos. Trouxe minha mão até o seu rosto e começou a senti-la com a sua fina pele.

Fiquei ligeiramente desconcertado até que percebi que no lugar dos olhos havia dois grandes afundamentos. Suas pupilas estavam cerradas como se tivessem sido cirurgicamente costuradas. Vi, com os meus olhos, a sua cegueira. Provavelmente congênita, apesar de ter me contagiado, pelo menos por alguns instantes.

Paralisei.

Eu não estava fazendo nada, mas, ele estava no controle. Ele me conhecia pela minha mão e a fazia percorrer o seu rostinho como se eu pudesse ver através dela. Eu era simplesmente manipulado.

A mãe, pela primeira vez se manifestou e disse para ele largar a mão do moço talvez supondo que a minha paralisia fosse incômodo. Imediatamente disse a ela que não me importava enquanto reconstruía psicologicamente a figura daquele menino dentro de mim.

O menino sorriu para si mesmo e sem nenhuma cerimônia beijou minha mão, como se a sua alegria lhe forçasse a isso, como se a conexão tivesse sido feita e a energia corrente entre nós assim o determinasse. Beijou minha mão com ternura. Beijou sem medo. Beijou, assim, simplesmente beijando.

Quando ele liberou a minha mão institivamente afaguei o seu cabelo e fui percorrendo até a nuca onde fiz um pouco de cócegas, num momento de maior retribuição física de um carinho inesperado da minha vida.

A mãe me perguntou a estação. Eu lhe respondi que era a Central. Ela se virou para o menino e disse: chegamos, filho. Sim, eles haviam chegado à estação Central e foram embora singelamente despreocupados com o que acabara de acontecer, deixando, em mim, a saudade de um velho amigo que acabara de conhecer, mas, que estava partindo para nunca mais.

E, se foram. Ao sair, a mãe teve que pega-lo no colo para que ele não pisasse no vão entre o trem e a plataforma. Seus biscoitinhos ficaram no banco e no chão que ele ocupava. Meu olhar foi com eles até quando pôde. E o meu trem seguiu.

Eu que enxergava tão bem havia visto tanta coisa sobre aquele menino, mas, não conseguia ver nenhuma forma de me conectar a ele, senão pelas inúmeras críticas das suas incontáveis condutas impertinentes.

Ele, por outro lado, não enxergava nada, mas, foi capaz de me encontrar ao seu lado, conseguindo ver tudo que era preciso para conquistar um coração que via demais.

A Manhã da Sua Infância

Se eu pudesse lhe dar um conselho, diria: aproveite a manhã da sua infância!

Os dias são leves e todas as cores estão lá. A luz é intensa e a noite só um pretexto para o sono arrebatador, de quem não precisa pensar em absolutamente nada depois do dia acabar, tão pouco gastar um segundo no ingrato exercício diário de prever o improvável antes do próximo dia começar.

Sua bicicleta é capaz de leva-lo a todas as esquinas do mundo e nenhum lugar é melhor do que o que você está ocupando naquele exato momento, independentemente da sua consciência sobre esses e tantos outros fatos tão importantemente irrelevantes que você se obrigará a pensar ao longo da vida.

O rocambole de doce de leite da sua mãe é a melhor iguaria do mundo, sua fantasia de Batman o traje mais adequado e tudo que você imagina sobre si mesmo é tão real que, sinceramente, não é possível que alguém ainda não tenha enxergado isso!!!

Nenhuma mulher é capaz de lhe fazer sofrer por mais de alguns instantes, época em que a dor termina com o início de uma nova brincadeira e o tempo que passa tão rápido para todos não consegue convencê-lo de que passa na mesma velocidade para você.

Quando as pessoas lhe encontram querem simplesmente lhe beijar, cheirar, abraçar, sincera e demoradamente, dizer o que sentem e todas aquelas coisas que a formal irrealidade de nossas vidas extraordinariamente comuns não nos permitem porque nos falta tanto tempo, nos sobra tamanho acanhamento, que pateticamente nos acostumamos com esse destemperado equilíbrio da maturidade, o qual no auge de uma medíocre existência, acredite, você renunciará sem qualquer relutância.

Guarde com carinho todos os cheiros de chuva nos dias quentes, bolos de fubá saídos do forno, as mangas colhidas nos quintais alheios, a cama da mãe sempre pronta, o singelo almoço de domingo, o pão com açúcar na casa da sua avó, todas as musicas que couberem na memória, as palavras inventadas e qualquer suvenir mental que a vida distraidamente lhe oferecer. Essas coisas serão o atalho mais rápido para o reencontro da felicidade suprema que você buscará em tantas coisas mais complicadas que será uma grata surpresa descobrir que elas sempre estiveram lá.

Por fim, se pudesse lhe dar uma conselho, diria: se um dia essas coisas de tão vividas ficarem muito distantes, se a alegria perder a intensidade de todas as manhãs e tudo ficar tão normal para você, a ponto de achar que a vida é o roteiro já escrito, sem final feliz, um jogo de cartas marcadas onde você sempre perde, eu lhe desejo um filho.

Um filho capaz de lhe surpreender nas coisas mais óbvias. Alguém que simplesmente ao levar as mãozinhas na boca lhe transtorne em ternura indizível, ao mexer as perninhas displicentemente lhe traga espanto de um milagre contínuo e que tão somente por existir resignifique a sua existência, a ponto de todas as sensações vividas na sua infância retornarem não como lembranças, mas, como experiências catárticas de um ser, num desesperado e lento processo de busca pelo alumbramento da manhã da sua infância.